segunda-feira, fevereiro 26, 2007

A desculpa invisível

Não requentei no fim de semana então, na maior cara de pau, vou requentar um hoje. Caiu o sistema aqui na agência sabe... Muita gente nunca mais ficou impune depois de ler esse post. Sempre que a situação ocorreu, lembraram da estória.

Gastón

Dentre todas as desculpas que já ouvi em toda a minha vida, elegi a mais irrefutável de todas: caiu o sistema.

O sistema é algo tão subjetivo, tão inacessível e misterioso que simplesmente não há o que discutir.

- Como assim moça, caiu o sistema? Quer dizer que meu cartão de crédito não passa, eu tô sem talão de cheques e não posso almoçar?
- Pois é senhor. Olha, o senhor me desculpa mas estamos sem sistema a manhã inteira.

Você não tem o que fazer. Não pode chamar o gerente, o supervisor, argumentar, rodar a baiana, perder a linha, a razão, a calma, nada. Não existe culpado. O culpado é o sistema: esse ser onipresente, onisciente, insípido, incolor e inodoro.

É tão sobrenatural que a gente fala que "O sistema está fora do ar". É etéreo, fluído, carbônico, quase eólico.

Que coisa distante. Imagine que o sistema vem de algum lugar há kilômetros dali, de uma salinha congelante onde um nerd branquelo com esparadrapo no óculos está trancafiado sem dormir há dias, cercado por duzias de cabos azuis, servidores empilhados com luzinhas piscando e uns quatro computadores rodando linux ao mesmo tempo. Ele que não é muito chegado a um contato com seres humanos, tem há 4 centímetros do pescoço um chefe obeso bufando com bafo de McDonald's, apertando o coitado que nem um botão de reboot, gritando tanto que o pobre vai ficar com sinal de modem no ouvido a semana inteira.

Mas, por um outro lado, essa é uma desculpa tão poderosa que seria ótimo se a gente pudesse usar algo assim no dia a dia.

"Desculpa filho, o sistema do Papai caiu e não vai dar pra comprar seu aviãozinho" ou então "Hoje não vai dar Benhê, tô com uma queda de sistema..." ou ainda "Cê não acredita, eu já tava indo pro trabalho e de repente, bem no meio da marginal me caiu o sistema". Mas existem algumas situações em que dá pra usar e realmente funciona. Não se esqueça que o sistema é o melhor amigo do trabalho atrasado. O prazo estourou, a idéia não saiu, o programador tá em cana, a gráfica errou, o finalizador caiu e quebrou o nariz: "Sabe o que é, caiu o sistema aqui do escritório e só voltou agora, cê não pegou meu e-mail? Pois é rapaz, nem isso tava funcionando..." O cliente pode não acreditar mas também não vai discutir.

Tava pensando: se um dia desses der aquele branco e eu não conseguir escrever nada pra postar nesse blog, já sei de quem vai ser a culpa.
Quero só ver quem vai duvidar.

domingo, fevereiro 25, 2007

Sessão angústia

Teu emprego tá uma porcaria? Teu salário é uma merreca? Tua namorada é um bagulho que dá vergonha de apresentar pros amigos? Teu chefe é um carrasco? Tua conta tá dois pau no negativo? Teu IPVA veio acima dos mil e quinhentos reais? Tu é corno? Tua sogra mora com você? Tua empregada tá manguaçando aquele licor que você guarda pras visitas? Teu vizinho de lado é uma igreja evangélica?

Depois desse monte de questões existenciais para medir o grau da lama em que você se encontra, preciso parar subitamente esse post para informar o seguinte:

Eu fui ver um filme, esse texto aqui é sobre ele e eu vou contar o final. Então já vou deixando bem claro pra quem quiser assistir “A procura da felicidade” de que algo pode sair errado na sua próxima ida ao cinema se você fizer questão de ler esse post.


Por isso estou te dando dois caminhos a serem seguidos:

1- Se não tá nem aí pra esse filme ou já assistiu, continue lendo.

2- Se não vê a hora de assistir, pare nesse parágrafo, assista e depois volte aqui pra terminar meu post.

Combinado?


Para os insistentes, vamos em frente.

Como eu ia dizendo, nesse fim de semana eu fui no cinema assistir "A Procura da felicidade". Olha, não encontrei viu. Minha mãe já ia me chamar de cegueta e me mandar procurar direito. Mas achar felicidade nesse filme tá duro.

Sabe aquelas cenas que a gente fica meio angustiado porque o personagem se dando muito mal? Então, agora imagina um filme inteiro só disso.


É uma surra.


São 117 minutos de duração. 115 vendo o cara se fuder de todas as maneiras possíveis e imagináveis que um ser humano é capaz nessa pobre existência terrena.

Aí no fim, quando você já tá tirando um daqueles tarja preta do bolso e ligando pra sua terapeuta, rolam 2 minutos dele se dando bem. É, hollywood né...

O cara é pobre. A mulher dele é uma megera. Ele investiu tudo o que tinha numas maquinas que ele tem que vender e ninguém quer. Aí ele perde a megera, o carro, o trabalho, a casa, o quarto de hotel, metade dos pertences, o sapato, a camisa, o amigo, o horário, o brinquedo do filho, o ônibus, a hora do albergue (ele vai parar num albergue pra mendigo), é roubado duas vezes, atropelado, preso, multado, tem a conta bancária rapelada pelo fisco...

Pra piorar, a estória é baseada em fatos reais.


Você sai do cinema com uma mistura de alívio por ter uma vida melhor e uma vontade de ir pra casa pra se certificar disso.

Cheguei no meu apartamento, liguei a tv no Discovery Kids e comecei a assistir Jay-Jay o aviãozinho. Era o máximo de pessimismo que eu podia encarar.

Sai zica...

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Caixa errado

Eu tenho o dom, a perícia, a especialidade master em escolher sempre o pior caixa no supermercado. É como um ímã. Aliás, nada me tira da idéia que Murphy trabalha no Carrefour. Tem lá uns 40 caixas funcionando. Todos um ao lado do outro, com mocinhas de cabelo preso e uniforme. Todos absolutamente iguais, com dois ou três carrinhos aguardando enfileirados.

O que você faz? Vai escolher onde passar suas compras pelos motivos mais óbvios: fila menor, menor quantidade de produtos presentes e nível de beleza da mulher que está empurrando o carrinho da frente.

Tomada a decisão, vamos lá.

Depois de se atualizar no mundo da cultura geral com a capa da Playboy, Contigo, Caras, Veja, Saúde Já, Arquitetura e construção, Chiques e Famosos, pegar um trident, um tic-tac, um maxi goiabinha e um refil de barbeador, você se dá conta de que aquilo está realmente demorando. Acabou o entretenimento, você já enfiou tudo o que não precisava no carrinho e não andou um centímetro.

Mas tem alguém que andou uns 10 centímetros: aquele imbecil que veio atrás de você e ficou batendo com o carrinho dele no seu calcanhar.

Acho que eu colei chiclete embaixo da mesa da santa ceia, não é possível...

Não esquenta não, depois de deixar sua canela roxa ele desiste da fila e muda pro caixa ao lado. Aliás, isso é um erro fatal. Na mesma hora eles chamam o Funcionário Murphy e onde você estava anteriormente vira iso 9000 em atendimento eficiente.

Bom, mas nós estamos aqui e nada desse povo desocupar a moita. Olha pra frente e a mulher do caixa tá com aquela cara de elevador, segurando algum papel na mão enquanto espera o patinador chegar.

Falta de troco, cheque pra conferir, troca de produto. Tudo é motivo pra te deixar esperando um século com os cotovelos apoiados no carrinho de compras.

Boa hora pra tentar puxar um papo de cumplicidade com a gostosa da frente.

- Que saco né?
- Nossa, que demora.
- Pior que eu moro aqui do lado, acabo vindo sempre nesse mercado. E você?

Depois de um longo e tenebroso inverno, daqueles que a gente experimenta na sessão de congelados quando vai fazer compra de bermuda, o mala consegue pagar, empacota as compras e vai embora.

Na cara de todo mundo aquele ar de "Arre égua...".

A gostosona da sua frente passa os iogurtes light dela rapidinho e finalmente chega a sua vez.

- Boa noite senhor. Tem algum produto que o senhor não encontrou?
- Paciência.

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Desejar

Tua lembrança me perturba.

Fica longe, fica surda.

Me atinge no estômago.

Me atinge no incômodo.

Teu fim que é da minha vontade.

Me põe de novo insanidade.

Saciedade.

Me põe de novo em calamidade.

Minha boca na tua pele

Tua pele na garganta

Dente na tua carne,

Ainda que um dia isso acabe.

Você me aumenta de tamanho.

Me deixa estranho.

Culpado.

Calado.

Escancara meu desejo da tua pele morena.

Minha pele vermelha.

Vergonha na cara.

Coragem pra quem te encara.

Puta que o pariu, que vontade que eu tô de comer uma coxinha.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Tudo sobre minha vó

Itala Iorillo Giannetti. Justamente pela mais italiana das alcunhas é que, durante a segunda guerra, ela passou a ser conhecida como Dona Linda. Casada com o senhor Gualtiero Giannetti. Família de imigrantes, quase todos artistas. Carpinteiros, pintores, serralheiros...

Dona Linda é a minha avó paterna. Minha maior referência de avós já que com o vô Gualtiero rolou um desencontro e com meus avós maternos, o lado espanhol da família, eu convivi bem pouco.

Dois filhos, seis netos, cinco bisnetos. Noventa aninhos. E já faz pelo menos uns quinze que ela jura que aquele é o derradeiro.

- Ah meu filho, esse é o último Natal da vó sabe...

Conta outra vó. Pois é, tá enganando o rabecão faz tempo. Já enterrou tio, filho, sobrinho, irmão, cunhado e continua firme e forte. Lúcida. As pernas tão falhando, mas a cabeça é de dar inveja.

Tá surda que só vendo. Ou ouvindo. Ou não ouvindo pra ser mais correto.

Vai lá em casa e fica no sofá assistindo programa de auditório com a tv no talo. Acabei de ter uma boa idéia, vou dar Headfones de 91 anos pra véia.

Ela vai achar bem estranho. Eu vou achar bem engraçado. Mas todo mundo vai ficar bem satisfeito.

A vó já tá naquela fase de sair distribuindo tudo que o que tem em casa pros netos. Ela mora numa quitinete no Itaim. Meu pai sempre volta da casa dela dando risada das coisas que ela quer botar no meu apartamento. Logo eu, o netinho hype.

Imagina só o que deve ser o mundo de hoje pra um senhorinha que nasceu em 1916. Que vivia no tempo do bonde, do ferro de passar roupa a carvão, do fogão a lenha. Aliás, ouvir essas histórias da boca dela é uma delícia.

Delícia era o gnochi e um bolinho de batata com carne que ela fazia. Era de comer de joelhos. No Natal ela ainda leva pudim de pão e crispela pro meu pai.

Como toda vó, ela também me dava meia e cueca de presente no natal e no aniversário. E ganhava uns perfuminhos de mim.

Como toda vó, a minha fala umas coisas engraçadas. Fala pijami, automovi, keds e abrigo. Por acaso foi ela que me ensinou a amarrar keds quando eu era pequeno. Me ensinou também a oração do anjo da guarda. Duas coisas tão pequeninhas mas que eu faço religiosamente todos os dias.

Ela vive falando que não aguenta mais ficar por essas bandas. Que tá enchendo o saco do meu avô pra ele vir buscar ela.

Mas a gente também enche o saco dela pra ficar mais um pouquinho.

E aí Dona Linda, onde vai ser a baladinha dos 100 anos?


ps. esse é o centésimo post desse blog

sábado, fevereiro 17, 2007

Infalível é acordar

Aproveitando o longo feriado de carnaval, um texto não menos longo. Um conto. Texto que saiu da minha vida e acabou voltando pra ela. Engraçado ler isso mais de um ano depois de ser escrito. Muitos já conhecem. Espero que continuem gostando.

Gastón.


Ele sabia que precisava resignificar a vida. Não podia mais acordar todos os dias com a mesma sensação, remoendo as mesmas lembranças, sentindo no estômago o soco forte dos pensamentos que invadem a cabeça tal qual um enxame de abelhas assim que o corpo desperta. O frio na barriga era seu melhor despertador, seu primeiro aviso de que ainda estava vivo. Sempre o acordava vinte e cinco minutos antes do radio-relógio. Relógio na cabeça bomba-relógio.

"Porra, isso deve fazer mal pro coração"


Rodrigo se levantou no escuro. Do lado direito da cama, pisando com o pé direito no chão. Lembrou de um sonho esquisito onde o mar começava no quintal de casa e pessoas do passado se despediam pra desaparecer no oceano. Escancarou a janela do quarto fazendo as venezianas baterem contra a parede, anunciando à vizinhança que ele tinha acordado. Era esse seu arauto matutino. O mar não estava lá, só o dia cinza que não convidou pros cinco minutos dedicados a observar a manhã.

O cinzento entristecia e descansava as retinas. Rotinas de todos os dias frios em que a primeira coisa que lhe vinha à cabeça era que "Ela odeia dias assim. Mulher friorenta". Ele adorava dias frios, mas não podia confessar isso sob a dura pena de se parecerem menos um diante do outro. Mas quem, em sã consciência, desejaria por mais fogo nesse inferno? Viver já era desconfortável demais, não carecia de mais calor.

Era isso que lhe dava a sensação de acordar cansado diariamente. Essas malditas pequenas memórias de tudo o que o ligava aquela mulher. As doses de endorfina, o corpo amolecendo, os joelhos falhando, o coração disparando, a fronte dolorida. Momentos que só existiam dentro daquele corpo, transformados em impulsos nervosos e reações químicas.

Rodrigo não fuma, não usa drogas, não toma remédios. Não se apóia, não tem cura e nem se ilude. É insana a mente de alguém que não procura ajuda, que agarra o touro pelos chifres, que faz planos pra conseguir parar de sofrer. E o plano infalível é acordar. Ele sabia que um dia desses a vida ia resignificar, que as lembranças iam desaparecer, que ia ser despertado pela própria gargalhada louca de quem se livrou daquele atentado diário contra o próprio nervo ou pelo barulho das ondas batendo embaixo da própria janela.

Deixou a casa meio bagunçada. Perdeu muito tempo debaixo do chuveiro quente. Deixou cair nas costas doloridas a água quase fervente, aspirou o vapor denso que tomou conta do ar, ficou escrevendo seu nome no vidro do box. Deixou pra trás a louça do café, a cama desarrumada e as roupas no banheiro.

- Dane-se, ninguém vai entrar no banheiro.

Entrou no carro, ligou o rádio. “Ela que simplesmente não sabia andar sem ligar o rádio”. Com ela o carro dava partida no play e não no contato. Agora, dirigindo sozinho pro trabalho, não é qualquer música que se ouve fácil. Muita coisa o fazia lembrar. Mas era essa a maneira de o mundo lhe dizer que o que aconteceu a ele, acontecia exatamente igual a todo mundo.

Não deve ser coincidência as estações do rádio do carro ficarem armazenadas na memória. Mais da metade de tudo o que toca, compõe uma vasta trilha sonora de lembranças tiradas do peito em longos suspiros. Agora Rodrigo só conseguia ouvir música alta, confusa, daquelas que não vale a pena prestar atenção. As músicas para vibrar, iludir, desalinhar os sentidos, as melodias, os chakras.

O caminho não era longo. Mas a cidade atravancada pela chuva que caiu na madrugada, denunciada nos vidros dos carros que dormitaram pra fora de casa, marcava seu ritmo lento com os limpadores de pára-brisa ligados de tempo em tempo. Um tique-taque, um não inconstante.

Os vidros salpicados eram perfeitos esconderijos. Ele ainda dirigia por ruas estreitas sendo alarmado por quaisquer cabelos de fios avermelhados transitando nos dois lados da calçada.

“É aqui perto que ela mora".

Não, não foi hoje que ele a viu sem querer. Ainda bem. Estacionou o carro na mesma vaga. Desligou o som e deixou o esconderijo pra caminhar desprotegido até o trabalho.

Rodrigo era obrigado a caminhar todos os dias sobre os mesmos passos que Ela fazia habitualmente. Aquelas ruas eram dela. Em cada metro de calçada estavam candenciadamente gravados os pés pequenos, bem menores que o dele, dessa mulher que o fazia diariamente perder o rumo. Andava cabisbaixo, imaginando seus pés se encaixando em pegadas imaginárias. Esse hábito lhe fazia deixar despercebidos os outros transeuntes. Mas naquele dia, igual a todos os outros, Rodrigo, a caminho do trabalho, perdeu a conta dos passos e viu o rastro do passado desaparecer por um instante. Parou. Não sabia mais o caminho. Não sabia mais para onde ia.

Olhou ao redor. Os carros estacionados no meio fio, uma senhora fechando o portão do prédio, um senhor abrindo o restaurante. Tudo comum, tudo ordinariamente simples e óbvio para uma rua como aquela. E vindo em sua direção, a passos simples e óbvios, alguém diferente daquilo tudo. Prendeu sua atenção. Prendeu a respiração.

Um caminhar diferente. Olhos atentos, nariz avermelhado de quem sentia os efeitos daquele frio. Mesmo assim vinha sem casaco. Talvez ela preferisse. Talvez quisesse deixar a mostra a tatuagem vermelha no ombro esquerdo. Talvez achasse que o tempo iria melhorar. Tinha cabelos longos, vermelhos de quem um dia também já fez o coração disparar. Rodrigo se deparava com outra mulher, uma anônima, uma página em branco.

Parou estático, pés cravados no cimento observando-a acenar contente para uma senhora que passeava no outro lado da rua de mãos dadas com uma criança. O encontro das duas mulheres a fez atravessar a rua de asfalto molhado. Evitou um outro encontro que nunca foi marcado. Quem sabe se os dois tivessem, por um breve instante, os olhares cruzados?

Alguns minutos se passaram ali naquela calçada. Aquele novo rosto sorriu ao despedir-se daquela senhora, sua conhecida. Agachou-se igualando altura à criança que também arrancou um belo sorriso daquela face. Até logo. Retomou o caminho para desaparecer no fim da rua. Nenhuma das mulheres percebeu que estava sendo tão vergonhosamente observada por um estranho do outro lado da calçada. E estranho era como Rodrigo se sentia. Não sabia quantos minutos se passaram enquanto ele permaneceu ali, imóvel, forçando sua mente a registrar cada segundo daquela cena que ele sabia, era um momento de lucidez único, uma certeza absoluta.

Retomou seu caminho. Chegou ao trabalho. Estava atrasado, mais atrasado do que normalmente estaria. A boca automata deu bom dia, o braço automato pendurou a bolsa na cadeira, encheu sua garrafa d'água, regou sua planta, afastou a cadeira para sentar-se diante do computador. Não conseguiu trabalhar.

Durante todo aquele dia não esperou que o telefone tocasse, que um e-mail chegasse, que alguém à porta mandasse lhe chamar. Não quis ouvir músicas nem sair para almoçar. Durante aquele dia ele apenas refez mentalmente aquela cena pra tentar ao menos dar rosto eternamente a uma mulher sem nome em seus pensamentos.

Chegou cedo em casa, mas logo se preparou para deitar. Ele sabia que no dia seguinte, ia acordar ao som do mar.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

João Gastão

É mania agora ou todo lugar que abre em São Paulo tem um nome badauê? Então, se você estiver pensando em abrir seu próprio negócio, principalmente aqui na Vila Madalena, é bom correr porque neguinho tá perdendo a razão social.

Aliás, a "Vila Madá" é o verdadeiro reduto de alcunhas badauês. Não sei por que essa mania agora de querer dar uma cara de raízes brasileiras pra tudo. Sabe aqueles nomes que parece que você vai entrar numa casa de taipa, comer num jogo americano de chita, tomar suco de clorofila e ouvir Maria Bethânia enquanto te servem umas sementes de papoula e um chá de camomila?

Bom, por essas bandas isso pode mesmo acontecer...

Já se foi o tempo em que a moda era botar mercearia ou empório pra tudo. Você podia abrir uma zona de meretrício mas tinha que ser Empório das Panteras ou Armazém da Luz Vermelha.

Agora o céu é o limite. Literalmente, já que a maioria dos estabelecimento tem algum nome de santo. Já tão acabando com a lista toda da igreja católica em boteco e restaurante. É Salve Jorge, São Bento, São Benedito, Santa Maria, Santa Cecília, Santa Fé, Santa Clara, Santa Marta, Santa Rosa do Brás, Mercearia São Roque, São Cristóvão, Santa Marcelina, pai, filho e espírito santo.

Isso sem falar nos santos do pau oco tipo Santa Gula, Santa pizza, Capim Santo, Santo grão, Santo Sanduíche...

Daqui a pouco tem que se confessar junto com a conta.

- Seu garçom, foram 5 choppes, 2 mojitos, 1 caipiroska, amém.

Pra escolher um nome é muito fácil. Primeiro selecione o começo que você acha mais apropriado. Aí pensa na Patrícia Travassos ou na Regina Cazé e inventa um final.

Santo (brócolis, berimbau, broto de bambu...)

São ( pepino, salsão, Gabeira...)

Santa (ingnorança, granola, Ana Carolina...)

Salve (o mico leão, a natureza, a abobrinha...)

Maria (Comida, Feijão, Semolina...)

José ( moita, girassol, gergelim...)

João (grandão, pé no chão, João mesmo...)


Facílimo ?

Se você quiser ir além no quesito originalidade badauê, mate seus amigos de São Tomé das Letras de inveja pesquisando nas músicas do Djavan. Sai cada nome bacana... já pensou uma lojinha chamada Místico Clã de sereia? E Zum de besouro? Pra quem não gosta de besouro tem Lampejo de abelha.

Bom, tudo pronto pra você se tornar o mais novo empresário da Vila Madalena e adjacências.

Funda um espaço cultural, com restaurante vegetariano, curso de ioga, produtos orgânicos e um projeto social pra ajudar a população ribeirinha do Vale do Jequitinhonha.

Quase não tem dessas coisas por aqui.


segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Boys and Girls

Because we are boys

Meu sobrinho, 3 anos e meio.


- Mãmãe?

- Que foi filho

- Que é que são essas bolinhas?

- Que bolinhas filho?

- Eu descobri umas bolinhas mamãe.

- Bolinhas aonde?

- Aqui no meu saquinho, tem bolinhas!

(minha irmã roxa de vontade de se escangalhar de rir)

- É mesmo? Então filho, todo menino tem bolinhas.

- Muito estranho essas bolinhas, acho que eu vou estourar.

- NÃÃÃÃOOOO LUCAS!!!


Because they are girls

Filha de uma grande amiga, 5 anos.


- E aí filha, tem algum gatinho lá na sua classe nova?

- Ah manhê...

- Fala vai, e aí, tem algum gatinho? Me conta?

- Ah, tem um lá, um menino novo.

- É mesmo? E como ele é?

- Ah manhê...

- Conta vai, como ele é?

- Ah... ele tem cabelo bege... camisa do Dantas e calça do Dantas.

sábado, fevereiro 10, 2007

Funcionário do Mês.

Uma coisa que sempre tira todo mundo do sério. Aqui em Sampa, como em qualquer grande capital, eles se proliferam.


Gastón


- E aí Dotô, posso dar uma olhadinha?


Deu ódio? Vontade de bater do infeliz? Quis parar o carro em cima da cabeça dele?


Flanelinha é uma praga. Um praga e um milagre do capitalismo moderno: a "profissão" auto-sustentável. Sim, porque ele protege o carro contra ele mesmo. Ou você resolve pagar ou, assim sem querer, aparece um rasgo na sua lataria de ponta à ponta, seu rádio inexplicavelmente some, seu pneu voluntariamente murcha...


Tem um amigo meu que já ia dizer "Olha, mas o cara podia estar roubando, podia estar matando, podia estar fazendo uma performance no farol..."
Bom, eu digo: guardador de carro me tira do sério.


- E aí chefia, deixa uma cerveja pra nóis aê na volta?


Cara de pau! Quer dizer que você vai pro boteco saindo daqui gastar minha grana em cerveja? E pra mostrar serviço ele vem atrás do seu carro e começa:


- Vem mais Dotô, pode vir, isso, aí deu tá bom, tá bom!!


Ah, eu fico de mau humor. E deixo isso bem claro pro sujeito.


- Moço, posso tomar conta?
- É, pode né....


Tenho raiva extra pelos flanelinhas de ocasião. Aqueles que aparecem que nem mosca de padaria em volta de show, jogo de futebol, feira, evento... daqueles que ficam no meio da rua com um braço apontando pra você e outro balançando na direção da vaga, sabe?


Vai no show Dotô? Tamos cuidando aqui da área, beleza? Deixa aqueles cinco real pra nóis que tá em casa.


Eu dou 1 real e olhe lá.


- Pô Dotô, só isso?


É mole? O cara tá numa rua que não é dele, cobrando por algo que basta estar acordado para automaticamente qualquer ser humano começar a fazer, não vai mover um músculo se alguém resolver roubar o meu carro (pra se borrar nas calças talvez...) e tá reclamando da grana?


Mas eu não quero ser injusto com todos os flanelinhas não. Em todo ramo de atividade sempre tem um profissional de destaque. E eu conheço um que é meu camarada e eu considero pra caramba: o Bahia.


O Bahia é o cara que toma conta do meu carro lá na FAAP. A praça Charles Muller, aquela em frente ao estádio, foi literalmente loteada e o meu pedaço é de total responsabilidade dele. Também tem que entender que 4 horas num estacionamento perto da faculdade não sai por menos de 10 paus.... e pro Bahia eu pago 2.


Fora que o serviço é de primeira.


O sujeito é um verdadeiro filósofo:
- Então, tem um dia aí que chegou uma mina lá com um baita carrão e pá, começou com umas história aí que tava precisando de uns carinho e me perguntou se eu trampava aqui faz muito tempo... aí a minha veio se chegando tá ligado...


É um lord inglês de educação:
- Ô meu querido, um bom fim de semana pra você viu, só quinta que vem agora? Então tá beleza até quinta. Fica com Deus.


É desapegado de bens materiais:
- Não esquenta não. Semana que vem você acerta, não tem pobrema não.


Informa sobre os eventos do Pacaembú:
- Então chefia, quinta que vem tem jogo do Curinthia, então se você vier aí tem que chegar mais cedo mas pode deixar que a gente vai tá por aqui.


É comentarista esportivo:
- Vixe, o São Paulo já era ó, perdeu ontem do Goiás...


Eu sustento a teoria de que o Bahia mora numa daquelas mansões ali perto e que algum daqueles carros importados estacionados é dele. Ele tá sempre de moleton da GAP, boné da Ralph Loren... pra mim, tudo original.
Teve um dia que ele até apareceu de chapinha no cabelo!!!
Plausível? Vamos fazer uma continha básica:


A média de grana que cada um contribui diáriamente é 2 reais. Em cada período ele deve cuidar de uns 50 carros. Se ele fica lá dando duro o dia todo e a FAAP funciona em 3 períodos, são 300 paus numa boa jornada. Em uma semana são 1.500 reais e em um mês 6.000.


Posso fazer uma pergunta? Quem aí ganha 6 paus por mês? Quem tem 3 meses de férias por ano? Quem não tem chefe?


Hoje o Bahia não estava mais lá. Sabe como é né, tá chegando as férias e o movimento diminui muito... Ele deve estar lá na Costa do Sauípe, com uma namorada Dinamarquesa, tomando um coquetel de frutas exóticas e comendo um camarãozinho.


- Ô Bahia, manda um postal! (vou pedir né, vai que ele levou o notebook e tá lendo o blog...)

A Arte do Grand Finale

Talvez alguns que frequentaram o croquer ainda se lembrem desse texto. Foi um dos posts mais recentes. Hoje em dia, em tempos de muitas saladas e alimentação saudável, o grand finale fica ainda mais simbólico.

Gastón.


Grand Finale é quando você come alguma coisa e reserva aquele pedaço especial para a última garfada, colherada, mordida ou o que quer que seja. Não importa de que modo, o que interessa é deixar o que há de melhor no prato para fechar com chave de ouro.

Você monta o seu próprio quitute. Comer fica bem mais emocionante.

Sabe quando você coloca aquele pedaço de pizza no prato e já enxergou que no canto superior esquerdo, pouco antes da borda tem aquele tomate seco com aquela fatia de parma harmoniosamente posicionada? Para tudo porque é lá! Trace mentalmente o perímetro, calcule o ângulo da garfada e delimite onde as incisões serão feitas. Aí comece a comer visando estrategicamente deixar só aquele pedacinho.

Sempre tem uma pequena pausa antes do Grand Finale. Claro, não é uma garfada comum. Exige toda uma preparação. Lá está ele, o último, o eleito, a mais perfeita combinação de todas, o creme de la creme. Essa é a hora de descansar os talheres, dar uma respirada, tomar um gole de bebida pra renovar o paladar e olhar para as pessoas na mesa (mas tem que ficar com aquele sorrisinho no rosto, aquele de quem está por cima, de quem quer fazer todo mundo perceber que sua refeição vai acabar em grande estilo).

Pronto, já pode dar o golpe de misericórdia.

Não sei explicar muito bem, deixa aquela sensação de que você comeu o que poderia haver de melhor no mundo, sabe? Aquele pedaço você degusta lentamente, vai tentando prolongar o sabor ao máximo.

Todo prato tem um Grand Finale. Pode ser o cheese burger que concentra mais queijo na parte debaixo e gruda no papelzinho, pode ser a macarronada que deixa aquele molhinho pra comer com o pão, isso sem falar naquela calda de chocolate do seu Sunday do McDonalds com um pouquinho de amendoim que você “esqueceu” ali entre as lombadas do copinho só pra pegar na última colheirada...

Abençoados os adeptos do “ Save the best for last”. Essas pessoas são muito mais felizes.

Aliás eu queria agradecer a Kibon por ter lançado o Corneto que é um sorvete que já vem com Grand Finale de fábrica. Isso é que é se importar com o consumidor.

Mas meus amigos não é só isso não. Um certo ser nefasto precisava ser mencionado: o ladrão de Grand Finale. Aquela pessoa sem escrúpulos cuja vida é feita de um PF mal combinado, que come macarrão junto com arroz e feijão e que só percebe que o almoço acabou quando escuta o garfo riscar o fundo do prato vazio. Esse ser sem noção que olha pro lado, vê aquela maravilha no seu prato e é capaz de imaginar que, em sã consciência, você está deixando de lado aquele quitute.

Por isso tenha seu Grand Finale sempre bem vigiado, sua faca sempre bem afiada e num lugar de fácil acesso.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Kill Film.

Um dos meus maiores sacrilégios cinematográficos de todos os tempos era nunca ter assistido Kill Bill. E esses dias eu acabei alugando o DVD e me redimindo do pecado mortal.

Todos que me conhecem um pouco melhor e já se sentaram ao meu lado numa sessão de cinema sempre foram unânimes a respeito:

- Gasta, como VOCÊ não viu Kill Bill? Logo você? Esse é praticamente o seu filme.

E agora eu vi. E todos tinham a mais absoluta razão. É fantástico. Longe do consenso geral, eu sei. Violento, sanguinário, maluco, Tarantino a beça. Mas está em alta conta no padrão Gastonildo de produções Hollywoodianas.

Só tem uma coisa que fez com que eu sofresse amargamente o fato de não ter assistido antes:

Há uma cena específica em a Uma Thurman começa a lutar toda de amarelo onde eu tive a mais absoluta certeza de que a Luciana Gimenes ia entrar por uma porta e dar boa noite pro auditório. Quem assistiu o Kill Bill e o Super Pop sabe do que eu falando.

Aquela retardada mental usou a trilha sonora do filme no programa dela.


Entra aquele "Tãm! Tãm! Tãããm! toda vez que um locutor com voz de quem não abre a boca pra falar começa a contar a vida do infeliz que sendo entrevistado. Que geralmente é uma garota de programa, um travesti, uma mulher que apanhou do marido ou aqueles "famosos quem?", os que sobrevivem de ir no programa dela. Tipo a Renata Banhara, uma mulher que não é atriz, não é modelo, não é cantora, não é apresentadora, nem caixa de jogo do bicho ela é. Profissão?

- Bem, eu sou entrevistada. Mas com uns projetos pro segundo semestre, estou estudando umas propostas e vou ser rainha da bateria da Unidos da Barra Funda. Ah, e eu sou ex-mulher do Frank Aguiar.

Aí quando a pergunta é polêmica do tipo (imagina agora o cara com a voz de quem não abre a boca pra falar) "No Diário de Birigui, Fulana de tal disse que jamais aceitou um convite pro teste do sofá. É verdade?"

Aí vem aquela sirene estridente, também trilha do filme para momentos periclitantes.

Pensa bem, uma coisa é você assistir ao filme e depois identificar a trilha no programa da Gimenes.

- Putz, roubaram a trilha do Kill Bill na cara dura.


Outra coisa é você ver o programa daquela mula e depois assistir ao filme.

- A não, a Gimenes nãããão!!! Cacete, estragou tudo...


Agora não tem mais jeito. Nunca mais vou assistir Kill Bill impunemente.

Ô Tarantino, processa essa mulher! A grana dela é toda do Mick Jagger mesmo.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Nó na garganta

Sabe qual a única maneira de todos os homens de uma mesa abandonarem seus copos de cerveja e decidirem ir correndo pra pista de dança bem no meio de uma festa de casamento?

Não, não há um gênero musical com esse poder.

Não, nenhuma mulher estava bêbada o suficiente pra fazer peito-le-lê na pista.

Não, não, o banheiro fica do outro lado.

Ali, há duas mesas de distância, encabeçada pelo cunhado do noivo, está se aproximando a turminha da gravata.

Essa tal turma é uma reunião de malas sem alça que vem com uma gravata de “déreau” numa bandeja emprestada pelo garçom, uma tesoura emprestada sei lá de quem, azucrinando a paciência de todo mundo atrás de uma grana.

Além do cunhado do noivo, sempre tem um irmão bêbado, um melhor amigo bêbado e um outro bêbado que ninguém conhece mas que faz questão de participar.

Eles querem que você “compre”um tequinho da gravata pra ajudar os noivos. E como mané não põe a mão no bolso nem pra guardar papel de bala, ao menor sinal, todo mundo sai correndo.

Quando todos os estelionatários em questão são seu amigos de longa data então...

- Opa, pede uma grana pro Gasta, esse tá cheio da nota. Tá de carrão novo, tá ganhando bem... vai Gasta, libera a bufunfa aí, vamo lá.

Pra começar que eu nem levo grana pra casamento. Pra que? Levo o necessário pra pagar um estacionamento e olhe lá.

E agora que eu tô entrando em forma, faço mesa-pista de dança em menos de 8 segundos.

Fiquei sabendo de um casório que, além da gravata do noivo, o povo tava picotando uma carçola da noiva. Os homens compravam a gravata e a mulherada a calcinha. Vou te falar uma coisa, neguinho inventa cada uma pra tirar uma casquinha dos outros...

Bom, já vou avisando que se algum dia na minha vida uma mulher conseguir me levar pro altar, esse negócio de vender trapinho tá fora de questão.

Mas se quiser me ajudar, tenho umas contas atrasadas aqui. Inclusive tem uma de luz que tá fazendo bodas de ouro em cima da minha mesa.

domingo, fevereiro 04, 2007

Tapa

Hotel, quatro e meia da manhã, sexto andar, corredor, corpo cansado, de frente pro 604, paletó nas costas, gravata afrouxada, perfume caro, mangas dobradas, levemente embriagado, colocando a chave na fechadura.

Há algumas porta de distância, por volta do 610, uma mulher uivando como se aquele fosse o sexo mais devasso de uma vida toda. Estalos de tapas intercalando gemidos. Quem quer que fosse, pedia a altos berros pra ser ouvido.

Fiquei ali parado. Olhando de lado. Atendendo ao chamado.

Inveja, graça, tontura, perplexidade, dores nos pés, tesão, sono, imaginação, solidão, curiosidade, necessidade, diversão, bisbilhotice, perdição, silêncio outra vez.

Entrei.

Hotel, dez e meia da manhã, recepção, poltrona verde em frente ao balcão, sabonete de hotel, gosto de pasta de dente, barriga de quem perdeu a hora do café, humor de quem bebeu uma dose a mais, bermuda, camiseta, Folha de São Paulo cobrindo o rosto.

Para cada casal que saía do elevador e pedia check-out, eu levantava os olhos e aguçava o espírito para imagens perversas daquela mulher aos berros, com a cara esbofeteada enquanto gozava igual a uma cadela. Naquela manhã, até os casais mais banais, os maridos mais bossais, as mulheres mais caídas, todos viraram protagonistas daquela putaria em alto e bom som.

Nunca vou saber qual das fantasias foi real. Mas quem quer que tenha dado vida ao meu pequeno devaneio sujo, sentiu-se nu por detrás do meu jornal.

sábado, fevereiro 03, 2007

Ensaio sobre a surdez

Viagem que tive depois de ler Ensaio sobre a cegueira. Inspiração que só algo muito real pode me trazer. Que nada nessa vida tenha sido em vão.

Gastón.

Então chegou o dia em que, um a um, todos ficaram surdos.
O mundo todo. Todos. Menos eu e você.
E agora só eu consigo escutar a tua voz e você a minha.
Engraçado como, depois dessa calamidade, algumas coisas continuam as mesmas.

Podemos inventar uma nova língua. O que você acha?
Podemos tentar falar ao contrário, em inglês, em francês, falar mal, falar bem.
Sempre haverá o que dizer.

Todos os discos do mundo nos pertencem.
As pessoas abandonam caixas e caixas de discos em frente à nossas casas.
Sim, porque agora todas as músicas nos dizem respeito.
Nada de novo vai aparecer. A não ser que resolvamos inventar alguma coisa.
Todos os concertos serão em nossa homenagem. Senão o que será dos músicos?
Todas as rádios tocam dia e noite a nossa canção. Porque a dos outros não serve pra mais nada.

Imagina só, se tanta gente já queria por nós antes, agora tem gente que vai ao trabalho só para tocar aquilo que embala nossa história.
E aqueles que pouco a pouco deixaram de querer, esses foram os primeiros a ensurdecer. Já tinham ficado cegos. Acho que mais cedo ou mais tarde também vão deixar de maldizer.

Mas ainda vão continuar invejosos. Com azedume na cara para nossas risadas, para os nossos papos animados, nossas palavras carinhosas e tudo mais que não suportaram ouvir e agora não o fazem mais nem se o quiserem.

Já se pode confessar tudo em público.
Pode-se gritar em letras garrafais. Podem-se disparar absurdos no meio da rua.
Vamos ser os únicos a esperar o telefone tocar.
E será sempre você ou eu do outro lado.

Penso que talvez seja por isso que eu tenha insistido tanto em começar a escrever.
Pra que se um dia a gente ensurdecer também, ainda haja lugar pra tudo o que eu ainda tenho pra te dizer. Porque as palavras entre nós não se esgotam nunca.
A conversa só pára pra dar vazão ao que o diálogo não pode substituir jamais.

Pensando bem, eu sentiria muita falta de completar as tuas frases.

Pensando melhor ainda, eu já aprendi a ler teus pensamentos.

Acho que ando mesmo pensando demais.

Queria te dizer uma coisa, mas que ninguém nos ouça:

-

É isso mesmo que você ouviu.

Só mais 5 minutinhos...

Texto originalmente escrito para ser lido num pós-almoço de meio de semana. Os efeitos serão mais sentidos.

Gastón


“Eu queria estar em casa, debaixo das cobertas, comendo pipoca, tomando chocolate quente e assistindo Sessão da Tarde”.


Com algumas variações gastronômicas, acho que todo mundo que eu conheço já disse isso em algum momento da vida. Especialmente após o almoço, num diazinho feioso, lazarento e garoento como hoje.

Como variações há os que preferem uma panela de brigadeiro, uma fornada de pão de queijo, uma garrafa de coca-cola, etc...

Mas todos são absolutamente unânimes numa coisa: a tal da Sessão da Tarde.

É consenso, um pensamento que já faz parte do imaginário nacional e vai passar de geração em geração enquanto a Rede Globo exibir isso na sua grade de programação.

Faz tanto tempo que eu não passo uma tarde dessas em casa que corro o risco de um belo dia pegar o cobertor, assar o pão de queijo e descobrir que não existe mais a Sessão.

Já pensou as pessoas serem obrigadas a falar “Eu queria estar em casa, debaixo das cobertas, comendo pipoca, tomando chocolate quente e assistindo o Serginho Malandro”????

Mas o que quer que passe na televisão, pra mim serve apenas como sonífero. Eu costumo deixar o volume bem baixinho, virar pro outro lado e deixar o programa falando sozinho. Duas, três horinhas de sono.

Acho que tudo é muito bem arquitetado. Porque passar um filme velho pela octagésima vez na televisão? Pra você poder dormir e não ter a sensação de estar perdendo o filme! Sem culpa, sem constrangimento e sem desperdício de tempo.

Bom, minha cama está há 6 quilômetros daqui e se seu enfileirar os briefings aqui em cima da minha mesa deve dar um caminho de papel com o dobro da distância.

Mas é isso que mantém o mito. É justamente essa certeza de que em algum lugar existe uma cama quentinha, pães de queijo e um filminho água com açúcar que quadruplica o prazer de viver um dia de folga.

Hoje vai passar Volta por cima.

"Após ser dispensado por sua namorada, um jovem resolve fazer de tudo para reconquistá-la, mesmo que para isto tenha que desistir do time de basquete e fazer testes para um papel em uma peça baseada em texto de William Shakespeare. Mas aos poucos ele começa a se interessar por outra garota, a irmã mais nova dela. "

Não é perfeito para um cochilo segunda-feira à tarde?

Nossa, que sono que me deu...

 
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