sábado, fevereiro 03, 2007

Ensaio sobre a surdez

Viagem que tive depois de ler Ensaio sobre a cegueira. Inspiração que só algo muito real pode me trazer. Que nada nessa vida tenha sido em vão.

Gastón.

Então chegou o dia em que, um a um, todos ficaram surdos.
O mundo todo. Todos. Menos eu e você.
E agora só eu consigo escutar a tua voz e você a minha.
Engraçado como, depois dessa calamidade, algumas coisas continuam as mesmas.

Podemos inventar uma nova língua. O que você acha?
Podemos tentar falar ao contrário, em inglês, em francês, falar mal, falar bem.
Sempre haverá o que dizer.

Todos os discos do mundo nos pertencem.
As pessoas abandonam caixas e caixas de discos em frente à nossas casas.
Sim, porque agora todas as músicas nos dizem respeito.
Nada de novo vai aparecer. A não ser que resolvamos inventar alguma coisa.
Todos os concertos serão em nossa homenagem. Senão o que será dos músicos?
Todas as rádios tocam dia e noite a nossa canção. Porque a dos outros não serve pra mais nada.

Imagina só, se tanta gente já queria por nós antes, agora tem gente que vai ao trabalho só para tocar aquilo que embala nossa história.
E aqueles que pouco a pouco deixaram de querer, esses foram os primeiros a ensurdecer. Já tinham ficado cegos. Acho que mais cedo ou mais tarde também vão deixar de maldizer.

Mas ainda vão continuar invejosos. Com azedume na cara para nossas risadas, para os nossos papos animados, nossas palavras carinhosas e tudo mais que não suportaram ouvir e agora não o fazem mais nem se o quiserem.

Já se pode confessar tudo em público.
Pode-se gritar em letras garrafais. Podem-se disparar absurdos no meio da rua.
Vamos ser os únicos a esperar o telefone tocar.
E será sempre você ou eu do outro lado.

Penso que talvez seja por isso que eu tenha insistido tanto em começar a escrever.
Pra que se um dia a gente ensurdecer também, ainda haja lugar pra tudo o que eu ainda tenho pra te dizer. Porque as palavras entre nós não se esgotam nunca.
A conversa só pára pra dar vazão ao que o diálogo não pode substituir jamais.

Pensando bem, eu sentiria muita falta de completar as tuas frases.

Pensando melhor ainda, eu já aprendi a ler teus pensamentos.

Acho que ando mesmo pensando demais.

Queria te dizer uma coisa, mas que ninguém nos ouça:

-

É isso mesmo que você ouviu.

17 Comments:

Blogger MH said...

suspiro...

5:11 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Suspiro 2...

5:17 PM

 
Anonymous Anônimo said...

"A conversa só pára pra dar vazão ao que o diálogo não pode substituir jamais."

Por frases assim que me tornei literata....

Lindo, amei!

7:25 PM

 
Anonymous Anônimo said...

que coisa linda isso... post cotidiano-não-cotidiano lindo.. :-)
beijos, Pol.

1:05 PM

 
Blogger Rubi said...

E aí Gastón gostou de Saramago???

Um beijo

9:12 PM

 
Blogger Cláudia said...

adorei
beijo

9:59 PM

 
Blogger Roberta said...

Parabéns, gostei muito.

11:55 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Putz! Que lindo...

9:51 AM

 
Blogger Gastón said...

Respondendo a todos de uma vez só, obrigado :0)

Rubina, sou fã do teu conterrâneo Saramago. Ele me cansa. Mas me encanta.

10:32 AM

 
Anonymous Anônimo said...

Adoro esse livro. Leia "Ensaio sobre a Lucidez". É meio uma continuação. Devastador. beijosdri

11:31 AM

 
Anonymous Anônimo said...

Esse é o melhor de todos os tempos. Redondo, contínuo, inteligente e extremamente sensível. Palmas em altos decibéis.

5:57 PM

 
Blogger Gastón said...

Adri, já faz um tempo que eu estou querendo ler. Ouvi falar muito bem mesmo. O saramago tem temas incríveis, as idéias dele são fantásticas.

Rods, tem mulheres que passam pela nossa vida e deixam inspirações como essa. Vindo de você meu amigo, o elogio conta em dobro. Valeu.

7:07 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Há muito tempo leio você e agora digo...sou apaixonada!

11:33 PM

 
Blogger Gastón said...

Anômima, fico muito lisongeado. Tanto pelo elogio quanto por saber que me lê há muito tempo. Obrigado :0)

9:04 AM

 
Blogger Unknown said...

Que boa surpresa esse texto. Tão diferente dos outros, mas tão bom quanto. Fiquei com nó na garganta...

6:39 PM

 
Blogger Celeste Garcia said...

Eu nunca li Saramago, portanto, dele nada posso dizer.
Mas de você, Gastón...
meu filho, você escreve muito, muito bem! Tu é meu fã, meu! ALKJDFHSDKJFHLK

Um amor do qual o mundo parece se ensurdecer, do qual todas as músicas lhe pertencem, um amor do qual se pode ler pensamentos, pensamentos da única pessoa que se faz ouvir, que te faz pensar.
Nem preciso dizer que amei seu texto!

Enquanto não vou pra ‘Praia Pasárgada’, aproveito pra te desejar um supimposo feriadão.
Que os ‘bons ares’ lhe tragam boas histórias ;)

Beijo :*

10:50 AM

 
Blogger Malu Green! said...

"Pensando bem, eu sentiria muita falta de completar as tuas frases."

Arrepiou e marejou os meus olhos.

Fiquei fã!

9:12 PM

 

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