Imaginário
Apoiou-se com as mãos na pia. Cotovelos desdobrados, quase curvados pra dentro. Atrasou pro trabalho porque passou ali dez minutos se olhando no espelho. Ficou olhando os cabelos revoltos porque dormiu com eles molhados. Olhando os detalhes da barba que azulava a cara, os fios brancos que começavam a despontar no queixo, da idade que ainda era pouca mas já dava os seus ares de alvura. Estava de olhos tão pertos da própria imagem que conseguia analisar cada poro, cada pêlo, cada cravo. E tomando consciência de si mesmo, se achou bonito. E naquele dia Adriano colocou sua melhor camisa, sua melhor gravata e foi trabalhar.
E na frente do ponto de ônibus, na vitrine da loja de eletrodomésticos, ainda fechada àquela hora da manhã, se olhou refletido de novo pra dessa vez se enxergar tremendamente velho. Tinha ali seus oitenta anos. A cara enrugada, marcada, a brancura espalhada, manchada, a pele cansada, engastada, curtida de tempo e de vida. Adriano subiu no ônibus com dificuldade, pediu ajuda a um rapaz. Sentou-se envelhecido. Sentiu-se exaurido. Foi viajando com seu reflexo idoso. Observando a cidade de um jeito saudoso.
Desceu do coletivo e caminhou até o serviço. Entrou só no elevador. Só ele e o dele invertido dentro do espelho. Gordo. Se viu imensamente gordo. Parecia ter cento e trinta quilos. Parecia ter sozinho capacidade daquele elevador que o carregava sôfrego pelos andares. Chegou ao décimo primeiro. Desceu e entrou no escritório. Acho que a cadeira iria traí-lo. Trabalhou quieto esperando faminto a hora do almoço. Onde ia devorar sozinho um prato imenso pra aplacar a fome de glutão. Comeu. Os colegas estranharam o apetite. Fizeram piadas sobre a noite supostamente passada. Que nada, aquilo era só o jeito que ele se enxergava.
Foi ao banheiro. Escovar os dentes. De leite. Era tão criança naquele reflexo que mal alcançava a pia. Brincou infantil lambendo a pasta nas pontas dedos. Fingiu de sério quando alguém entrou pra urinar na latrina. Riu bobo quando ficou sozinho de novo. Trabalhou cheio de criatividade, energia, ansiedade. Fez sons com a boca, ficou leve, alegre. Quase sem ego. Quase etéreo.
No fim do expediente, choveu. Fim de tarde nessa cidade sempre chove. A água o pegou desprevinido e desprecavido. Entrou no bar. Resolveu comer por ali enquanto esperava a tempestade de verão acalmar. Pediu um sanduíche de queijo e um suco de laranja. No porta-guardanapos de metal se observou assustadoramente feio. Como era horrendo. Que rosto desproporcional. Olheiras profundas. Mal arranjado, mal distribuído, mal feito. Comeu em silêncio, com o sanduíche na cara pra não espantar as pessoas. Deixou o troco pra sair desapercebido e não causar repúdio à moça do outro lado do balcão. Voltou monstruoso pra casa se esgueirando pela escuridão.
Deitou na cama. Embaixo do teto que não refletia nada. Fechou os olhos e olhou pra dentro. Se viu encravado na escuridão. Se viu certo. Como quem só se reconhece na imaginação.