segunda-feira, março 31, 2008

Imaginário

Apoiou-se com as mãos na pia. Cotovelos desdobrados, quase curvados pra dentro. Atrasou pro trabalho porque passou ali dez minutos se olhando no espelho. Ficou olhando os cabelos revoltos porque dormiu com eles molhados. Olhando os detalhes da barba que azulava a cara, os fios brancos que começavam a despontar no queixo, da idade que ainda era pouca mas já dava os seus ares de alvura. Estava de olhos tão pertos da própria imagem que conseguia analisar cada poro, cada pêlo, cada cravo. E tomando consciência de si mesmo, se achou bonito. E naquele dia Adriano colocou sua melhor camisa, sua melhor gravata e foi trabalhar.

E na frente do ponto de ônibus, na vitrine da loja de eletrodomésticos, ainda fechada àquela hora da manhã, se olhou refletido de novo pra dessa vez se enxergar tremendamente velho. Tinha ali seus oitenta anos. A cara enrugada, marcada, a brancura espalhada, manchada, a pele cansada, engastada, curtida de tempo e de vida. Adriano subiu no ônibus com dificuldade, pediu ajuda a um rapaz. Sentou-se envelhecido. Sentiu-se exaurido. Foi viajando com seu reflexo idoso. Observando a cidade de um jeito saudoso.

Desceu do coletivo e caminhou até o serviço. Entrou só no elevador. Só ele e o dele invertido dentro do espelho. Gordo. Se viu imensamente gordo. Parecia ter cento e trinta quilos. Parecia ter sozinho capacidade daquele elevador que o carregava sôfrego pelos andares. Chegou ao décimo primeiro. Desceu e entrou no escritório. Acho que a cadeira iria traí-lo. Trabalhou quieto esperando faminto a hora do almoço. Onde ia devorar sozinho um prato imenso pra aplacar a fome de glutão. Comeu. Os colegas estranharam o apetite. Fizeram piadas sobre a noite supostamente passada. Que nada, aquilo era só o jeito que ele se enxergava.

Foi ao banheiro. Escovar os dentes. De leite. Era tão criança naquele reflexo que mal alcançava a pia. Brincou infantil lambendo a pasta nas pontas dedos. Fingiu de sério quando alguém entrou pra urinar na latrina. Riu bobo quando ficou sozinho de novo. Trabalhou cheio de criatividade, energia, ansiedade. Fez sons com a boca, ficou leve, alegre. Quase sem ego. Quase etéreo.

No fim do expediente, choveu. Fim de tarde nessa cidade sempre chove. A água o pegou desprevinido e desprecavido. Entrou no bar. Resolveu comer por ali enquanto esperava a tempestade de verão acalmar. Pediu um sanduíche de queijo e um suco de laranja. No porta-guardanapos de metal se observou assustadoramente feio. Como era horrendo. Que rosto desproporcional. Olheiras profundas. Mal arranjado, mal distribuído, mal feito. Comeu em silêncio, com o sanduíche na cara pra não espantar as pessoas. Deixou o troco pra sair desapercebido e não causar repúdio à moça do outro lado do balcão. Voltou monstruoso pra casa se esgueirando pela escuridão.

Deitou na cama. Embaixo do teto que não refletia nada. Fechou os olhos e olhou pra dentro. Se viu encravado na escuridão. Se viu certo. Como quem só se reconhece na imaginação.

11 Comments:

Anonymous Anônimo said...

A gente realmente se vê de várias maneiras... Mas é muito difícil olhar para a escuridão e se ver certo.

Achei lindas várias frases... depois comento pessoalmente ;)

beijos

5:32 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Uau! Tudo a ver! Tudo a ver! Eu consigo me achar diferente várias vezes ao dia tbm...
Beijoo

6:19 PM

 
Blogger Gastón said...

Fê, olhar pra dentro é se ver certo.

Ciça, mais do que se sentir diferente a cada espelho ou a cada dia, a gente nunca tem certeza do que realmente é. Só quando olha pra dentro.


Aí tem um paralelo de que a gente é quem a gente pensa ser. A gente vive naquilo que deseja ver de si mesmo. Ao mesmo tempo a gente se deixa influenciar por uma imagem nossa que não é real. A velha idéia de simulacro.

6:58 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Pensava que era só eu que me via diferente, dependendo do dia, da lua, do estado de espírito, da luz ou do espelho, dentre outros fatores.

7:14 PM

 
Anonymous Anônimo said...

últimamente só me ando vendo balofa... e o maridão tb! Credo... Mas acho que as impressões que temos de nós mesmos variam conforme o estado de espírito. O meu anda guloso! ashdauhdsuahduahsd

PS: Eu comecei um blog, se puder passar lá vou ficar feliz! http://xeeeeee.blogspot.com/

10:21 AM

 
Blogger Amarilis said...

Puxa Gastón, tenho acompanhado seu blog. Adorei esse post, a desordem cronológica das imagens. Para mim, remeteu a lembranças e expectativas do futuro, mistura de personagens, ver-se pelos olhos dos outros. Acho que deu margem a várias interpretações durante a leitura, até que finalizou arrematando e unindo todos numa só figura. Gosto do Borges. Seu conto é realismo fantástico.

9:03 PM

 
Blogger Laís Reis said...

*.*..lindo!!
Acho que realmente nos conhecemos pouco...sempre nos consideramos aquilo que as pessoas dizem que somos....feias,bonita,gordas,magras....
....gostei do post..sempre gosto...rsrs..adoro a maneira como conduz o texto...^^
Kissu moço

www.reislais.blosgpot.com

10:21 PM

 
Blogger Flavia Melissa said...

esse texto teu é daqueles que dói entre as costelas. que apita uma sirene dentro do peito e que alerta para a essência multi-facetada de todos nós, imperfeitos seres humanos, que acreditam que sendo uma coisa não se pode ser outra.

bobagem.
somos todos únicos e muitos, um cheiro desperta um, uma música desperta outro, uma lembrança cala todos...

li seu blog e adorei tudo. já vou te linkar nas minhas estrelas-guias, pois é isso que vc é.
um diamante cheio de facezinhas diferentes uma das outras.

beijos & stay fabulous.

11:53 PM

 
Blogger Gastón said...

Carolzinha, estado de espírito influencia diretamente nas retinas. De quem existe e de quem vê.


Virgínia, com certeza. A gente acorda se vendo diferente. Mais do que aparência, nos enxergam pela vibração. Vou lá fuçar seu blog.

Amarilis, todas interpretações muito pertinentes. É isso mesmo :0) Borges é fantástico. Li pouco dele. Sou encasquetado com outros dois autores: Paul Auster e Saramago. Fico alternando os livros dos autores até esgotar a bibliografia. Já leu Auster? Me identifico.


Lais, essa é uma das interpretações mais próximas. Aquilo que fazem acreditar que a gente é. Não só na aparência. Obrigado pelo elogio e pela visita :0)


Flávia, nesse blog cheio de humor, as vezes um textinho assim cai meio atravessado no gosto das pessoas. Que legal que vc curtiu, não só esse, como ouros também :0) Ser eclético é necessário. Ser versátil tb. E sobre o texto, ser múltiplo é da nossa natureza. Tks e venha sempre tá?

10:16 AM

 
Blogger Unknown said...

Nossa, arrasou! Sem mais palavras.

2:46 PM

 
Blogger Unknown said...

Adorei!!!
muito bom mesmo!!!

2:54 PM

 

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