Em meados de 2003, minha então professora de francês fez uma bela viagem pela europa. Entre os destinos, Toledo. Toledo é um cidade medieval, cercada por muralhas, localizada nas chamadas cercanías de Madri. Tomando um trem na estação Atocha, em pouco menos de uma hora se chega à cidadezinha, obrigatória pra quem está de passagem por aquelas bandas. Em Toledo, escondido num salão de igreja, está um dos meus quadros prediletos: O enterro do conde de Orgaz, pintado por El Greco. Essa pintura se tornou uma das minhas prediletas pois foi uma das primeiras que estudei, ainda nos tempos de colégio. Enfim, é emblemática, despertou em mim um interesse que acabou culminando em meus estudos sobre História da Arte.
Mas voltemos à fabulosa viagem da minha professora. De volta ao Brasil, na nossa primeira aula pós-viagem, ganhei um lápis gravado justamente com a figura do quadro. Nem preciso dizer que fiquei muito contente. Não só por ter sido lembrado mas como pela incrível coincidência a respeito do tema, justo a respeito da minha obra de arte predileta.
Fiquei com dó de usar o tal lápis. Acho que isso carregamos todos nós desde a escola. Acabou virando um objeto de apreço. Coloquei-o no meu porta-lápis que, nada mais é do que um belo copo de vidro da Coca-Cola. Ficava lá, entre tantas canetas no meu escritório, no estúdio que tinha junto com um sócio, amigo meu.
Além da pena em gastar, vale a pena dizer que eu não uso lápis pra escrever. Me dá aflição aquela ponta arredondada e aquela letra grossa e rançosa saindo no papel. Só uso lapiseira 0.7 e de grafite mais mole, geralmente 2B. Lápis, pra mim, é um objeto que tem que permanecer intacto (meio doente mental, eu sei).
Um belo dia, chego no estúdio e encontro meu sócio com o meu precioso presente de escrita na boca. Ele estava se deliciando com a borrachinha, mastigando um suculento pedaço dela, já prestes a amassar o alumínio que segura a borracha. Arranquei a tempo dos dentes dele (pena que não levei nenhum junto) e fui avaliar os estragos.
- Porra cara, meu lápis do El Greco? Caralho, como você mastiga um lápis que não é nem seu?
Peguei um estilete. Não, não furei o estômago do meu sócio. Cortei o resto da borrachinha mastigada e deixei rente, como se tivesse sido usada até o fim. Ficou esteticamente recuperada.
O Lápis voltou para o copo de coca-cola. Anos se passaram, a sociedade acabou, fiquei freelando por uns tempos, acabei na agência onde estou até hoje. Agora o El Greco mora aqui na minha casa, em cima da minha mesa do escritório, dentro do mesmo porta-lápis.
Esses dias, ganhei do meu pai um quadro do M. Cavalcante, um artista plástico goiano. Trouxe aqui pra casa pra ver se ficava legal na minha sala. Ficou excelente. Preocupado em fazer os furos no lugar certo, fui atrás de algo para riscar a parede. Enfiei a mão no meu copo porta-lápis e puxei meu querido El Greco.
O lápis está completamente destruído.
Suspeitas?
Vou dar uma dica: começa com "J" e termina com "Ô".
O lápis está sem ponta, meio carcomido no lugar do grafite, com a gravura totalmente esgarçada, rasgada e semi-arrancada.
Agora me diz em nome do falecido Conde de Orgaz: o que diabos essa mulher aprontou com esse lápis?
Eu tô aqui tentando imaginar e, por mais hipóteses que minha mente formule, não encontro uma resposta palpável.
Será que a Jô não gosta de barroco?
Será que ela curte uma arte contemporânea e tentou dar uma modernizada? Romper com o estilo? Estabelecer um diálogo com o dadaísmo?
Será que acabou o macarrão e ela foi procurar a borrachinha pra comer? Aí quando viu que não tinha mais borrachinha ela tentou comer a gravura?
Será que ela tem merda na cabeça?
Bom, não vou jogar o lápis fora sem antes perguntar qual a proeza que ela realizou dessa vez.
Depois eu trato de me livrar dele.
Bom, há quem defenda que eu deveria me livrar dela.
Logo agora que ia bater o recorde de 8 meses sem espatifar nada...
Pois é, vou providenciar o enterro do enterro do conde de orgaz.