Seu Ademir era um velhinho franzino. Um farelo de homem. Magrelo que passava pelo portão, atraía cachorro vira-lata na rua e desafiava as leis da aerodinâmica quando andava na beira da praia de São Sebastião. Seu Ademir era casado com a Dona Cida. Uma senhorinha de cabelo acajú, óculos fundo de garrafa e que adorava entuchar comida no marido.
- Come véio magrelo.
- Não quero, chega, já comi dois pratos.
- Come se não o vento vai te levar embora e sozinha aqui eu não fico.
Parecia criança. E quando o Seu Ademir tirava a camisa, Dona Cida exibia orgulhosa uma barriguinha mínima surgindo no companheiro.
- Olha com o Ademir tá forte, tá bonito, tá gordo.
Não sei, talvez ela tivesse receio de que as pessoas julgassem que o velhinho era aquele chassi de grilo, por que as habilidades dela na cozinha não fossem lá essas coisas. Mas muito pelo contrário, Dona Cida fazia um cuzcuz de camarão que era de botar no pecado qualquer cristão.
Seu Ademir, como todo velho que se preza nesse mundo, tinha lá as suas manias. Mas uma entre tantas ficava evidente pra quem quisesse ouvir. Aliás, ficava evidente pra quem não quisesse ouvir também: ele lia tudo em voz alta. Não só o jornal, a palavra cruzada e a bula de remédio. Ele lia absolutamente qualquer palavra que estivesse a sua frente em qualquer lugar que se encontrasse. Ia andando pela rua lendo as placas, os nomes das barraquinhas da praia, a propaganda no aviãozinho que cruzava o litoral (e quantas vezes aquele avião passasse, tantas ele dizia "fique na cor do verão com óleo de bronzear fulano de tal"). Dependendo do lugar onde o véio entrava, sua vida podia virar um inferno. Teve uma vez que o Tio Arlindo quis porque quis levar o Seu Ademir ao cinema.
- Tio, o senhor tem que ir no cinema. Tá uma beleza, as telas são enormes, tem uns baita poltronão pra gente sentar, precisa de ver.
Quase sairam de baixo de cacete da sessão. O véio leu todas das legendas.
A Dona Cida já não ligava mais pra mania do marido. Acostumou. E tava meio surda também, diga-se de passagem. Ninguém sabe dizer ao certo quando essa história começou, mas há quem defenda que foi quando o Ademirzinho começou a aprender a ler. Avô e neto saiam para dar uns passeios e ver os peixes recém chegados nas barcas dos pescadores na beira da praia. No caminho os dois iam devorando tudo quanto é placa, letreiro e propaganda.
No fim de ano, Armando, o filho mais velho, vinha até a casa dos pais buscá-los pra passar o natal com o restante da família em São Paulo. Moravam num sobrado na Vila Prudente, numa rua tranqüila e com cara de interior. Nessa época do ano, todos os livros eram guardados, revistas jogadas fora e a assinatura do Jornal cancelada por conta da visita ilustre do patriarca. As vezes ele entrava na despensa e ficava lá lendo umas embalagens, mas ninguém ouvia então tudo bem.
A Lígia, mulher do Armando, sempre dava um jeito de não precisar acompanhar o marido no bate e volta até a praia porque já sabia o que ia acontecer nas duas horas do retorno: Seu Ademir ia ler tudo que visse pelo caminho. Outdoors nas entradas das cidades, placas de trânsito, placa de carro, traseira de caminhão, propaganda de motel e por aí vai.
"Lucélia modas"
"DCB 4556"
"Prefiro ser um bêbado conhecido do que um acoolico anônimo"
"Motel SexSabe, promoção: duas horas 35,90 com almoço executivo"
"CFF 5323"
Dez, vinte, cinqüenta quilômetros e os nervos do Armando iam sendo testados ao limite.
"Amortecedores Pedrão"
"Só não mando minha sogra pro inferno porque tenho pena do diabo"
"Sandálias querida"
"São Sebastião, retorno, 500m"
"CHG 3122"
Sabia que não adiantava pedir pra parar. Ligava o rádio e tentava se concentrar na música pra não prestar atenção ao falatório do pai.
"DNR 4560"
"Mulher deixa rico sem dinheiro e pobre sem vergonha"
"Borracheiro"
"Se dirigir, não beba. Se beber, me convide."
"Roseli modas"
Armando torcia pra não ter nenhum outdoor ou motel ou qualquer porcaria no quilômetro seguinte. Mas as placas de carro eram inevitáveis. Tentava ao máximo não ultrapassar ou ser ultrapassado. Mas era impossível se manter assim por muito tempo.
"Pedágio, 2 km"
"Mantenha distância"
"DCC 7676"
"Mulher feia e morcego só saem a noite"
"Alegria de poste é estar no mato sem cachorro"
- Puta que o pariu!
E o Armando puxou o carro que ia parando devagar no acostamento.
- Que foi meu filho?
- Que foi pai?
- Porque que ocê tá tão nervoso? Porque parou o carro?
- Acabou a gasolina, porra.
- Ah, eu falei.
- Falou o que pai?
"Auto- Posto Javali: Gasolina Comum 2,49. Ducha Grátis. Aceita cheque pré."
- Fogo viu, só porque eu sou velho ninguém me escuta.