domingo, dezembro 16, 2007

Se ler, não dirija.

Seu Ademir era um velhinho franzino. Um farelo de homem. Magrelo que passava pelo portão, atraía cachorro vira-lata na rua e desafiava as leis da aerodinâmica quando andava na beira da praia de São Sebastião. Seu Ademir era casado com a Dona Cida. Uma senhorinha de cabelo acajú, óculos fundo de garrafa e que adorava entuchar comida no marido.

- Come véio magrelo.
- Não quero, chega, já comi dois pratos.
- Come se não o vento vai te levar embora e sozinha aqui eu não fico.

Parecia criança. E quando o Seu Ademir tirava a camisa, Dona Cida exibia orgulhosa uma barriguinha mínima surgindo no companheiro.

- Olha com o Ademir tá forte, tá bonito, tá gordo.

Não sei, talvez ela tivesse receio de que as pessoas julgassem que o velhinho era aquele chassi de grilo, por que as habilidades dela na cozinha não fossem lá essas coisas. Mas muito pelo contrário, Dona Cida fazia um cuzcuz de camarão que era de botar no pecado qualquer cristão.

Seu Ademir, como todo velho que se preza nesse mundo, tinha lá as suas manias. Mas uma entre tantas ficava evidente pra quem quisesse ouvir. Aliás, ficava evidente pra quem não quisesse ouvir também: ele lia tudo em voz alta. Não só o jornal, a palavra cruzada e a bula de remédio. Ele lia absolutamente qualquer palavra que estivesse a sua frente em qualquer lugar que se encontrasse. Ia andando pela rua lendo as placas, os nomes das barraquinhas da praia, a propaganda no aviãozinho que cruzava o litoral (e quantas vezes aquele avião passasse, tantas ele dizia "fique na cor do verão com óleo de bronzear fulano de tal"). Dependendo do lugar onde o véio entrava, sua vida podia virar um inferno. Teve uma vez que o Tio Arlindo quis porque quis levar o Seu Ademir ao cinema.

- Tio, o senhor tem que ir no cinema. Tá uma beleza, as telas são enormes, tem uns baita poltronão pra gente sentar, precisa de ver.

Quase sairam de baixo de cacete da sessão. O véio leu todas das legendas.

A Dona Cida já não ligava mais pra mania do marido. Acostumou. E tava meio surda também, diga-se de passagem. Ninguém sabe dizer ao certo quando essa história começou, mas há quem defenda que foi quando o Ademirzinho começou a aprender a ler. Avô e neto saiam para dar uns passeios e ver os peixes recém chegados nas barcas dos pescadores na beira da praia. No caminho os dois iam devorando tudo quanto é placa, letreiro e propaganda.

No fim de ano, Armando, o filho mais velho, vinha até a casa dos pais buscá-los pra passar o natal com o restante da família em São Paulo. Moravam num sobrado na Vila Prudente, numa rua tranqüila e com cara de interior. Nessa época do ano, todos os livros eram guardados, revistas jogadas fora e a assinatura do Jornal cancelada por conta da visita ilustre do patriarca. As vezes ele entrava na despensa e ficava lá lendo umas embalagens, mas ninguém ouvia então tudo bem.

A Lígia, mulher do Armando, sempre dava um jeito de não precisar acompanhar o marido no bate e volta até a praia porque já sabia o que ia acontecer nas duas horas do retorno: Seu Ademir ia ler tudo que visse pelo caminho. Outdoors nas entradas das cidades, placas de trânsito, placa de carro, traseira de caminhão, propaganda de motel e por aí vai.

"Lucélia modas"
"DCB 4556"
"Prefiro ser um bêbado conhecido do que um acoolico anônimo"
"Motel SexSabe, promoção: duas horas 35,90 com almoço executivo"
"CFF 5323"


Dez, vinte, cinqüenta quilômetros e os nervos do Armando iam sendo testados ao limite.


"Amortecedores Pedrão"
"Só não mando minha sogra pro inferno porque tenho pena do diabo"
"Sandálias querida"
"São Sebastião, retorno, 500m"
"CHG 3122"


Sabia que não adiantava pedir pra parar. Ligava o rádio e tentava se concentrar na música pra não prestar atenção ao falatório do pai.


"DNR 4560"
"Mulher deixa rico sem dinheiro e pobre sem vergonha"
"Borracheiro"
"Se dirigir, não beba. Se beber, me convide."
"Roseli modas"


Armando torcia pra não ter nenhum outdoor ou motel ou qualquer porcaria no quilômetro seguinte. Mas as placas de carro eram inevitáveis. Tentava ao máximo não ultrapassar ou ser ultrapassado. Mas era impossível se manter assim por muito tempo.


"Pedágio, 2 km"
"Mantenha distância"
"DCC 7676"
"Mulher feia e morcego só saem a noite"
"Alegria de poste é estar no mato sem cachorro"


- Puta que o pariu!

E o Armando puxou o carro que ia parando devagar no acostamento.

- Que foi meu filho?
- Que foi pai?
- Porque que ocê tá tão nervoso? Porque parou o carro?
- Acabou a gasolina, porra.
- Ah, eu falei.
- Falou o que pai?

"Auto- Posto Javali: Gasolina Comum 2,49. Ducha Grátis. Aceita cheque pré."

- Fogo viu, só porque eu sou velho ninguém me escuta.

15 Comments:

Blogger Vane said...

Muuuito bom!!! \o/

7:49 AM

 
Blogger MH said...

"...franzino. Um farelo de homem. Magrelo que passava pelo portão, atraía cachorro vira-lata na rua e desafiava as leis da aerodinâmica..."

EU SOU O SEU ADEMIR AMANHÃ. ESSE VEIO É DOS MEUS. rsrsrs.

marcelo henriques

8:03 AM

 
Anonymous Anônimo said...

hahahahaha! Essa história poderia ter acontecido na minha família fácil fácil! rsrsrsrs
Beijão!

9:12 AM

 
Blogger UrbAnna said...

Muito bom, Gasta, como sempre.
Eu quando tava aprendendo a ler era igualzinha ao seu Ademir!
Nas viagens com a família eu quase apanhava! E quando eu parava de ler todas as placas e anúncios começava a cantar, não sei por que todo mundo pedia para eu voltar a ler...
Beijo
(urb)Anna

9:37 AM

 
Anonymous Anônimo said...

Hahahaha...tem um velhinho japonês lá no meu prédio que toda tarde ele fica perto da portaria lendo em voz alta todas as placas dos carros que entram...Detalhe, com sotaque japonês: Cê, Ypisron, Dabiru, Nove, Sete, Tlês, Quatlo...uma graça!

10:55 AM

 
Blogger Rodolfo Barreto said...

Tenho medo de esbarrar com esse cara por aí:

- Opa. Prazer, Rodolfo.
- Oi, otário.
- Otário?
- É. Acabei de ler na sua testa.

1:22 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Muito bom, hein?

Adorei o estilo dos personagens. A Vovó de cabelo acajú arrasa, mas ainda prefiro as que tem cabelo roxo :)

beijos

3:56 PM

 
Blogger Gastón said...

Lady Hell, tks a lot ;0)

MH, gagá a gente já tá ficando faz tempo. Só falta ficar véio.

DD, acontece nas melhores famílias ;0)

Obrigado Anna. Isso me fez lembrar o clássico "manhê, tá chegando?"

Ciça hahahaha, sério? Dá uma lista telefônica pra esse velho que ele pira de felicidade.

Rods, e se esse velho resolve ler nas entrelinhas? Fudeu.

Obrigado Fê. Tô sabendo desse seus planos pro futuro...

4:08 PM

 
Blogger Fábio Melo said...

=]

Perfeito! Djô non hablo puorrra nenhuma di espanhiol, pero, me gusta mutchiô seu texto!

___________________________________

TemPraQuemQuer <<< Clica e entra!

10:33 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Rapaz, eu costume ter paciência de Jó com os velhihos, mas esse ai só amordaçando...já pensou ? Brasília- Salvador de carro com um desses ao lado ?
Falando nisso tô de partida amanhã. Quer alguma coisa da terrinha ? ´
Bjs

9:21 AM

 
Blogger Cláudia said...

AH AH AH AH
ADOREI!
Especialmente o nome do motel! Registra antes que alguém use a idéia.
beijo

9:25 AM

 
Blogger MH said...

Putz, pior que até véio eu ja to. hehehe.
Ah, me lembrei de um vizinho doido que eu tinha que ficava falando sozinho: "JOSE DA SILVA RIBEIRO. MUNNNNNNNDO E MUNDIAL!!! EU SOU EU PORQUE A VACA ME LAMBEU"
hahahahahahahahahhaha

profeta

marcelo henriques

1:06 PM

 
Blogger MH said...

Tem um recadinho pra você no meu Post : "Volto em 2008".

marcelo henriques
http://diariodemh.blogspot.com

10:39 AM

 
Blogger . fina flor . said...

kkkkkkkkk, adoro seu humor.

e em Goias Velho que tem a loja Tora Toralina, em homenagem a poeta que nasceu lá, Cora Coralina

kkkkkk

beijos, querido

MM.

11:18 AM

 
Blogger Gastón said...

Fabio, muchas gracias amigo. Venga siempre acá. Nosotros vamos nos quedar muy contentos. Arriba, arriba!

Lunna, boa viagem pra terrinha. Adorei teu e-mail. E, realmente, Brasília-salvador com o Seu Ademir ia ser o inferno na terra rsrsrs.

Ih Clau, esse nome de motel já é véio ;0)

MH, hahahaha, que porra de vizinho é esse? Eu tamém tive um bizarro quando era criança. Ele ficava doidão e entrava num terro baldio. Aí ficava gritando coisas como "OVO POOOOODRE". Fui lá no seu blog meu amigo. Agradeci por lá e aproveito pra agradecer por aqui também.

Moniquinha sério? Hahahaha, sensacional rsrsrs. E eu adoro quando você comenta por aqui, é sempre uma honra.

11:33 AM

 

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