No lugar onde mora.
Fernando mora sozinho. Há quase quatro anos no mesmo edifício, não tem amizade com vizinhos. Conversas sobre trivialidades dentro do elevador era o máximo que se permitia. Pelo menos era uma melhor saída do que deixar escapar caras constrangidas no silêncio dos 16 andares de espera. Morava no último andar. Pra não precisar ter a desagradável sensação de ouvir alguma compartilhável vida sexual de quem quer que vivesse no piso de cima.
- Não quero ninguém trepando em cima da minha cabeça. Imagina só, que coisa constrangedora alguém tomando banho há 2 metros de distância? Sempre que ouvisse aquele barulhinho de chuveiro do vizinho, não poderia deixar de pensar que tem alguém nu ali, provavelmente um sujeito peludo com o saco pendurado apontando pra mim. Dessa vez eu fui mesmo pra cobertura. Agora é o meu saco que tá por cima.
Mania louca de ficar imaginando aquelas vidas empilhadas umas sobre as outras.
O tempo em casa era sempre escasso. Talvez por isso não se preocupasse muito em ter todos os móveis. Na sala um sofá e algo para apoiar a tevê já servia. Tevê que quase não assistia. Sair da redação todo dia depois das dez matava qualquer possibilidade de vida pós-trabalho. Chegava num horário onde já se podia ver quase todas as varandas acesas do lado de fora.
Andava cansado. Com o peito carregado de nicotina e vermelhidão nos olhos.
Batia largado no sofá, atirando-se de braços abertos, empurrando os sapatos com os pés, se livrando dos botões da camisa e agarrando o controle remoto. As vezes adormecia ali mesmo, ignorando os apelos do estômago ou mesmo sem nem lembrar de jantar.
- Porra Casemiro, o que é que você quer agora heim? Tá me olhando com essa cara porque?
Casemiro era um gato branco, com um olho de cada cor que o primo do Fernando deixou de "herança em vida".
- Duda, nem vem cara. Te vira com esse gato. Sei lá, leva ele com você pra Santiago. Tanta gente faz isso. Coloca ele naquelas gaiolinhas e pronto.
- Fê, eu te descolei o sofá e o apoio de TV. Segura essa pra mim vai? Cuida do Casemiro. Sou teu primo cara.
- Sei lá, mal sei cuidar de mim. Vou parecer uma tia velha com esse gato.
- A diferença entre você e uma tia velha é a saia xadrez e o gato. O bichano você já tem. Valeu Fê.
- Tá, mas se você voltar vai querer ele de volta né?
Não teve jeito, teve que levantar pra dar comida para o pobre animal. Sob pena de ter algum canto da casa dilacerado pelos ressentimentos alheios.
- Caramba Casão, acabou sua ração, cara. Seu gato gordo. Seu saco sem fundo. Fica sem comer vai? Eu fico, porque você não consegue também?
Pior que não tinha nada que agradasse ao paladar de um gato dentro daquele apartamento. Fernando tentou jogar pra ele umas azeitonas, um pão dormido, um pedaço de queijo e até o restinho de lazanha que sobrou do jantar do dia anterior. O Casemiro cheirou ítem a ítem, deu umas lambidinhas mas se voltou para o dono com aquela cara de "azeitona não é comida pra gato".
- Droga Casemiro.
Pegou a chave do apartamento, vestiu os sapatos, abotoou a camisa novamente e desceu mal humorado pra buscar algo na padaria.
Leite pro gato, pães e mortadela pra ele. Até que não foi tão mal a caminhada obrigatória, pelo menos naquela noite não ia precisar cozinhar nada. Conforme se aproximava de casa, a fome ia dando cada vez mais as caras.
Entrou no elevador. Apesar do olfato prejudicado pelo maço diário de cigarro, na mesma hora foi atingido por um almiscarado perfume de mulher. Elevador de prédio sempre tem dessas coisas. Os odores dos vizinhos que permanecem ali guardados para a próxima jornada. Num jogo que premia com um banho tomado ou pune com o odor acre de um colocador de carpetes. Fernando, gozando de boa sorte, se distraiu imaginando em que andar estaria a dona daquele perfume. Só um belo pescoço seria digno desse. Devaneios.
Entrou em casa, quase pisou no Casemiro que ficou se esfregando perigosamente entre seus calcanhares enquanto tentava fechar a porta e equilibrar a as compras. Deu de comer para o bichano que, depois de satisfeito, foi se aninhar na almofada que tomou pra si como cama.
Fernando tratou de aplacar sua fome também. Perdeu os sentidos diante da televisão, ali mesmo, há três metros de distância de onde dormia Lívia, a mulher que deixou o elevador perfumado.
Olhava tanto pro teto. Não sabia que o pecado morava ali do lado.
25 Comments:
oba! vai continuar!
Olha que o Casemiro é que deu o start neste romance. Se não fosse ele com fome, o Fernando nunca teria sentido o perfume da Livia no elevador.
Isso mesmo, Casemiro, faz jus à ração que tu come!
beijo
9:46 AM
É...
Sensacional!
Sabe,que esse tipo de história se repete constantemente!
10:00 AM
Ensaiando p/ o livro que vc vai escrever?
ARRASOU!!
Adorei... Voltei mais vezes com essas histórias!
Fiquei aqui pensando... eu moro no 2o andar... qt gente pelada em cima da minha cabeça, né?!
10:23 AM
Nunca tinha pensado sobre essa história de gente pelada nos andares de cima! Ainda bem que sou como o Fernando e moro no último andar! rsrsrs
Vai ter continuação?????
Beijos!
10:29 AM
Clau, não sei se vai continuar. Talvez pare por aí. São tantos desencontros que acabam brecando histórias. Esse pode ser mais um.
Urbe, todos os dias, em todos os prédios de apartamento do mundo.
Aninha, não tem a ver com o livro. É um conto. Mas, certamente, serve de exercício ;0)
Dani, o Fernando é meio neura, né? Imagina, ir morar na cobertura por esse motivo. Bom, se vc mora, sorte sua. Assim ele não te contamina com a loucura dele rsrsrsrs.
10:48 AM
Mais que um comentário, aqui vai um conselho: não continue. Esse pessoal que se vire com sua imaginação. Chega de coisa mastigada e essa cultura de que tudo precisa de um fim, impregnada por novela da Globo. Talvez muitos não concordem com o que eu digo de primeira, mas vai um conselho também para os leitores: experimentem imaginar a continuação. É um exercício muito bom e fica cada vez mais prazeroso.
Abraços.
Ps.: continue escrevendo contos, isso sim :)
11:18 AM
Só um parênteses:
(Eu nunca vi história com personagem que tem um Labrador cair na desgraça. Agora, personagem melancólico com eu já vi um monte. Reparou? Pára pra pensar. Esse bicho é capaz de sugar a energia da gente. Sai, vai cruzar o caminho de outro.)
11:22 AM
nunca se sabe quem se esconde no andar de baixo (ou nos vários acima, no meu caso...).
Mas além do pecado da luxúria, pode ser o pecado da ira, da preguiça, de qualquer coisa. Melhor não descobrir...
11:24 AM
Errrrrrr... entendi que é 1 conto! O elogio era esse mm: que seus "exercícios" p/ o futuro livro são deliciosos de ler!
Bjos e saudades de vc!
12:06 PM
Rods, acho natural as pessoas quererem ver uma sequência da história. Até porque, eu tinha inicialmente pensado em dar um desfecho diferente pra esse conto. Depois mudei de idéia e preferi deixar as coisas meio no ar, causar um desencontro. Talvez um dia desses eu faça o Casemiro fugir pro apartamento do lado.
Beibe, sensacional seu comment. Dá um outro bom conto.
Aninha, sorry. Achei que vc estava se referindo à temática do livro. Obrigado querida, que bom que gostou :0)
1:18 PM
Casemiro,defende aí o seu pedaço que o Rodolfo já tá fazendo a sua caveira!
3:46 PM
Fica tranquila, Cláudia. Quem tem 7 vidas não vira caveira tão fácil :)
3:50 PM
Gasta, eu preciso concordar com o nosso amigo do cabelo fofo(vc ja apertou a cabeça dele, pra perceber como o cabelo é fofo? faça) não continue historia. O seu fim, pode ser diferente do romântico que criei, logo depois de ler o conto. Na minha imaginação tudo é tão lindo.
bj
4:46 PM
Moro no último andar, mas não é cobertura não! É igualzinho todos os outros aps do prédio! :)
Eu acho que não é necessário ter continuação. Claro que é legal imaginar seu próprio final. Só queria saber se era só um conto e se já tinha alguns planejados com este personagem.
Beijão!
7:09 PM
Clau, o Rods não tem moral. Ele tinha a Jô em casa até outro dia.
Rods, deixa o Casão em paz.
Fabi, eu não vou apertar o cabelo do Rods. Primeiro que vai pegar mal. Segundo que pode rolar um piolho. Ok, seu final estará preservado ;0)
POis é Dani, foi só um conto. Ainda não planejei nada pro Fernando e pra Livia. Sei lá, quem sabe uma hora dessas escrevo um sobre ela. Aí sim a coisa pode ficar bacana ;0)
Sei que as pessoas tendem a comentar menos quando publico contos ao invés de crônicas. Imagino que seja pelo fato de crônicas terem mais pontos de identificação das pessoas com os fatos. Mas gostaria de saber dos que passam por aqui, o que acham dos contos. Se curtem ler, se preferem crônicas, se acham um saco, se ficam desapontadas porque queriam dar risada, se gostam dessa variedade, o que acham. Críticas, please.
7:57 PM
Queria entender pq as pessoas talentosas são tão inseguras.
Gasta, crônicas ou contos, ate hj gostei de tudo, faz o que a tua intuição mandar.Vai ser sempre a melhor escolha, bj
9:04 PM
o pior é quando vc sabe que o pecado mora ao lado... e fica tentando encontrar o pecado no elevador (já que murph existe... sempre dá errado). vou escrever um de vizinhos logo me inspirou!!
11:42 PM
Essa merece continuar.
Lívia é um bom nome... gostei da historia.
12:49 AM
Adorei o conto.
Essa história de ficar imaginando o que se passa no apartamento de cima é mesmo terrível... melhor nem pensar.
Estou morando em apartamento há 4 meses, e no início ficava com essa neura de pensar que enquanto eu tomava banho havia alguém tomando banho "em cima da minha cabeça".
Não é nada romântico!
Agora já parei com a neura.
Gastón,
Contos ou crônicas... vc é sempre ótimo.
Beijo
8:37 AM
Gastón,
O que houve com o Rodolfo? Por que ele está assim? Vamos lá, dar um abraço coletivo, acender um incenso e amassar o cabelo fofo dele? Também podemos colocar um CD da Sandy pra tocar ao fundo, para ajudar a criar o clima.
Adorei a história, mas o que mais gostei foi do nome do gato. Casemiro, definitivamente, é nome de gato. E branco.
12:05 PM
Fabi, na verdade é só uma pesquisa :0) Das pessoas que lêem, cerca de 20% comentam. O blog é essencialmente de crônicas de humor. Então, quando posto contos ou crônicas mais introspectivas, queria saber o que os leitores acham. É isso. Essa resposta é legal. E ninguém entra e fala "olha Gasta, desse texto eu nem gostei". E isso pode ser bom pra mim. Me ajudar a melhorar meu estilo e a escrever melhor para pessoas tão bacanas como você.
Lilla, o meu prédio só tem gente casada. Um saco. Nem uma paquerinha de elevador eu descolo viu. Opa, escreve e corre aqui pra avisar :0)
Valeu Leo. Cara, vamos ver. de repente rola um capítulo dois.
Anna, essa neura é terrível. Mas é engraçado, não é? Muito obrigado pelo elogio, que bom que você gosta dos dois.
Ana, cê viu só? Cara mais revoltado, nunca vi. Ele precisa de terapia. Afe. Pera aí que eu vou dar um tapa na cabeça dele e já volto.
12:11 PM
E aí o que aconteceu???
Fenrando e Lívia estão tendo um caso? Ela é casada? Conta logo! bjs Re
12:20 PM
desculpe pelo comentário reduzido... hahahah
Até fiquei com vontade de escrever o outro lado... a parte da Lívia. Mas não sou tão bom assim, então deixei pra lá :)
1:11 AM
Bom, gosto do seu texto. Gosto desse estilo que você busca, rio bastante nas crônicas e admiro as personagens dos contos.
Eu, agora, não tenho o que criticar ( desse conto, pelo menos...talvez relendo outros ) pois , como disse, gosto da maneira que você escreve.
E eu paguei inteira, meu filho, quero serviço completo: Crônicas E Contos, ora bolas!
Abraços, e continue escrevendo. juro que, na hora que eu não gostar de alguma coisa, você vai ser o primeiro a saber!
9:58 AM
Re, acho que eles nem se conhecem ainda. Não sei, será que a Livia é casada?
Leo, be my guest! Se quiser escrever, fique a vontade. Vai ser legal :0)
San, obrigado. Legal que curte as duas vertentes. Os contos são mais difíceis. E fique a vontade pra criticar quando não gostar. Escrever faz parte da vida.
10:38 AM
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